A escola é a instituição que possibilita a manifestação e análise das concepções culturais de uma população. Estudantes apresentam concepções resultantes de seu dia a dia, conceitos considerados cotidianos e, na escola, têm a oportunidade de contrastá-los com os conceitos estruturantes, sistematizados.
O paradigma sociocultural fundamenta estudos sobre educação e cultura e possibilita nortear o desenvolvimento e a implementação de ações que contemplem a interação entre essas instâncias. Em seu esquema teórico, Vigotski, que é considerado o fundador e o principal promotor desse paradigma, utiliza-se de uma forma integrada ao relacionar questões como a aprendizagem, o desenvolvimento psicológico, a educação e a cultura.
(…) a cultura não é pensada por Vigotski como um sistema estático ao qual o indivíduo se submete, mas como uma espécie de “palco de negociações” em que seus membros estão em constante processo de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significados (OLIVEIRA, 1992, p.80).
A cultura está representada pelo outro, pelo meio físico e social em que o sujeito está inserido. O sujeito, então, constitui-se a partir de sua atividade em relação ao meio físico e social, atuando no meio, experienciando-o, mediado tanto por suas próprias experiências ontologicamente construídas, como por seus parceiros, adultos ou crianças. O funcionamento psicológico humano, para o autor, é construído ao longo da vida por meio de um processo constante de interação do indivíduo com seu meio social. Esse movimento proporciona a aproximação do homem à cultura construída pela humanidade. O homem, assim compreendido, não é mero produto de seu contexto social, mas é um ser ativo-interativo na produção de sua realidade social, cultural e individual.
O ensino tem papel fundamental na obra de Vigotski: através da aprendizagem é possível o desenvolvimento. A aprendizagem e o desenvolvimento não coincidem, mas estão em complexas inter-relações. Para ele, esses dois eventos, aprendizagem e desenvolvimento, estão intrinsecamente relacionados e um depende do outro, ou seja, a aprendizagem favorece o desenvolvimento e este, por sua vez, favorece novas aprendizagens: “a aprendizagem só é boa quando está à frente do desenvolvimento” (VIGOTSKI, 2000, p.334).
Refletir sobre educação e cultura, hoje, nesse sentido, envolve uma análise da importância da inserção das tecnologias digitais ao cotidiano da escola. O estudo sobre o uso das tecnologias digitais no processo ensino-aprendizagem não é recente na educação. Desde o final do século passado, com a introdução do uso dos computadores na escola, diversos estudos têm sido realizados com o objetivo de identificar estratégias e consequências dessa utilização. O envolvimento das instituições de ensino, professores e demais profissionais da educação nesse processo de implementação das tecnologias digitais é considerado um desafio e discussões sobre o tema são recorrentes em diferentes instâncias.
Um das questões a serem consideradas trata-se da organização da atividade didática com o uso das tecnologias digitais. Nesse aspecto, há evidências de que a integração das tecnologias digitais ao currículo favorece a personalização do ensino ao oferecer condições para que o estudante participe, de forma autônoma, dos processos envolvidos construção de conhecimentos. Ao aproximar o professor de grupos de estudantes em uma organização adequada do espaço e das ações compartilhadas entre eles é possível a elaboração e a oferta de estratégias que sejam adequadas a cada estudante, de acordo com as demandas individuais. Em salas de aula que contam com uma organização do espaço considerada “tradicional” que enfatiza a exposição de conteúdos e a mera transmissão do conhecimento de um (professor) para muitos (estudantes), a avaliação do atual estado de desenvolvimento de um sujeito é feita pela média da avaliação do estado atual de desenvolvimento dos demais alunos. O ensino é único e a expectativa de aprendizagem e, consequentemente, de desenvolvimento, que se espera atingir pode ser eficaz para alguns estudantes e ficar aquém, ou além, da necessidade de outros. As propostas decorrentes da organização da atividade didática com a integração das tecnologias digitais contemplam diferentes estratégias de condução do conteúdo, reunindo atividades presenciais e on-line, envolvendo, portanto, diferentes estilos de aprender, uma vez que os estudantes não aprendem da mesma forma, no mesmo ritmo e a partir das mesmas estratégias; envolvem, ainda, diferentes estratégias que dependem da socialização e do trabalho colaborativo o que possibilita a construção de conhecimentos de forma significativa ao estudante.
Ao analisar a percepção dos estudantes em aulas que envolvem o uso integrado de tecnologias digitais, observamos que os estudantes consideram a tecnologia como um importante recurso para aprender, porém, os resultados de entrevistas apontam que a sua utilização não ocorre com a frequência desejada por eles, pois a maioria gostaria que as tecnologias digitais fossem mais utilizadas pelos professores em sala de aula (MARTINS, 2016). Em relação à opção de aprender sem a utilização das tecnologias digitais, ouvindo o professor e fazendo exercícios em livros e no caderno, há estudantes que optaram por essa modalidade. Essa informação é importante, confirmando a importância da mistura, blended, de estratégias, mostrando que não devem ser excluídas as aulas consideradas tradicionais, em que há exposição dos conteúdos quando elas se fazem necessárias. Os estudantes valorizam a colaboração entre pares ao aprender, e consideram que o fato de compartilhar dúvidas e saberes com os colegas facilita a aprendizagem, fato que é pouco explorado quando as aulas estão centradas na exposição feita pelo professor, mas que podem ser exploradas em uma abordagem metodológica com a integração de tecnologias digitais.
Os professores, por sua vez, são enfáticos ao apontar que o modelo de ensino centrado na exposição do professor, principalmente em grupos numerosos de estudantes, não possibilita sua aproximação constante e compreensão das facilidades e dificuldades dos alunos. Confirmam, assim como apontado pelos estudantes, a importância de valorizar os momentos de colaboração entre os pares, que passam a ser mais evidentes em uma nova configuração de espaço, e de valorizar a autonomia dos estudantes na construção de conhecimentos. Os professores enfatizam que os estudantes se empenham mais e mostram-se mais responsáveis por seu aprendizado nesse modelo de organização da atividade didática e que o desenvolvimento da autonomia dos estudantes é alcançado por meio do compartilhamento da responsabilidade entre os envolvidos no processo. As vantagens da utilização das tecnologias digitais ao oferecerem feedback para ações de personalização é apontado pelos professores, apesar dos desafios, também apontado por eles, em relação à implementação eficiente desses recursos em sala de aula.
Certamente, não podemos considerar a utilização e integração de tecnologias digitais na educação como a única solução para resolver a questão da inserção dos estudantes em uma cultura digital que origine novas aprendizagens. Não é a única resposta possível, também, para resolver as questões relacionadas construção de conhecimentos, nem, tampouco, é uma proposta com fim em si mesma. Porém, a reflexão sobre a constituição dos novos espaços de aprendizagem, em abordagens que podem causar ruptura em relação ao modelo vigente, e que repensam a configuração do aprender sem considerar a divisão dos estudantes em séries, anos, a divisão do conteúdo em disciplinas formais, mas considerando as necessidades de aprendizagem, os projetos de vida e a autonomia dos estudantes também pode ser um caminho para a inserção do estudante do século XXI em um ambiente educacional que valorize os avanços da cultura digital. É importante, contudo, compreender que é necessário persistência nesse processo, pois não se modifica uma cultura escolar de um dia para o outro. Nesse aspecto, concordo com Papert (2008), ao afirmar que
[…] O método da experimentação controlada que avalia uma ideia implementando-a com o cuidado de manter todo o resto igual e medindo o resultado, pode ser apropriado para avaliar os efeitos de uma modificação pequena. No entanto, não pode nos dizer nada sobre ideias que poderiam levar a uma mudança profunda. Não se pode simplesmente implementar tais ideias para ver se elas conduzem a uma mudança profunda: um sistema megamudado pode começar a existir apenas por meio de uma evolução lenta e orgânica e de uma harmonia próxima à evolução social. (p.39).
O autor apresenta essa reflexão após contar sua experiência, quando criança, com a criação de um jornal (PAPERT, 2008, p.38). Identifica que essa experiência desempenhou um importante papel em seu desenvolvimento intelectual, mas que nenhum teste seria capaz de mensurar esse desenvolvimento comparando resultados anteriores e posteriores à elaboração do jornal, pois os efeitos significativos foram aparecendo no decorrer de um período longo e dependendo, sobretudo, de uma série de fatores, entre eles, o engajamento pessoal na atividade.
De fato, essa reflexão procura explanar possiblidades para que a organização das atividades didáticas crie condições adequadas para a aprendizagem e para uma educação para uma sociedade que está inserida em uma cultura predominantemente digital. Porém, compreender os efeitos do uso das tecnologias digitais na educação e julgar se esse uso modifica a forma de aprender não é uma tarefa de curto prazo. Essas modificações, assim como outras possibilitadas pela inserção de muitos e variados recursos na educação, são percebidas em longo prazo, acompanhando o desenvolvimento de uma geração que está imersa em modificações constantes e diárias. As ações realizadas na educação, da mesma forma, são avaliadas pelos pares com base no “impacto”, ou seja, uma análise, na maioria das vezes, quantitativa em relação ao desempenho dos estudantes antes e após a inserção de determinado modelo. Defendo que algumas análises quantitativas, pontuais, são possíveis, porém, avaliar o quanto um modelo poderá impactar as ações de ensino e aprendizagem em um curto período ocasionará uma visão superficial da profundidade de mudanças que são identificadas quando toda a gestão da sala de aula é atingida pela proposta.
A ponta do iceberg é a alteração dos resultados das avaliações que funcionam como métricas nacionais e internacionais de desempenho, porém, o corpo desse grande bloco que está submerso envolve todo um sistema educacional que urge de mudanças estruturais que possibilitem autonomia intelectual aos estudantes do século XXI, para os quais os conhecimentos enciclopédicos estão a um clique, porém as análises desses conhecimentos devem ser construídas por eles. Autonomia intelectual é um dos objetivos da educação, que deve ser estimulado e construído em todos os níveis de ensino. Não teremos avanços em nosso sistema de ensino supondo que uma educação que privilegie a pura transmissão de conhecimentos alcançará essa autonomia apenas como um efeito colateral.
REFERÊNCIAS
MARTINS, Lilian C. Bacich. Implicações da organização da atividade didática com uso de tecnologias digitais na formação de conceitos em uma proposta de Ensino Híbrido. 317f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
OLIVEIRA, M. K. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento – um processo sócio-histórico. 4ª edição. São Paulo: Editora Scipione, 1992.
PAPERT, S. A máquina das crianças: repensando a escola na era da informática. (ed.rev.). Porto Alegre: Artmed, 2008.
VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Vídeo: Lilian Bacich – Pensando Itapevi – Escola do Parlamento
Publicação produzida para Escola do Parlamento de Itapevi.